segunda-feira, janeiro 29, 2007

onde estás?

Onde estás?
Não te sinto,
Não te vejo.
Onde estás?
Não te sinto,
Não te ouço.
Sei apenas
Que te desejo.
Mais um pouco,
Mais um pouco.
Faz-me sentir feliz,
Outra vez,
Mais uma vez.
Faz-me sentir feliz,
Mais um pouco,
Como louco.
Faz-me surdo,
Faz-me mudo,
Mas faz-me sentir feliz.
Faz-me cego,
Faz-me louco,
Tudo isso é tão pouco,
Pois não posso viver sem ti.


Também muito antiguinho, outro de 1996, e se foi publicado neste dia, não o foi por acaso. Um doce a quem relacionar a data com o texto.

domingo, janeiro 28, 2007

o gigante e o anjo: mitomania

E, o anjo, assim persuadido sentou-se para ouvir as palavras daquele gigante.
Este, logo que se apercebeu de ter captado a atenção do anjo, tossiu levemente como que a aclarar a voz, e iniciou o seu discurso de forma eloquente e concisa, convicto da sua razão, a verdade maior e mais inabalável deste mundo e do outro.


"O amor é um mito. Um belo mito porventura, mas um mito, uma daquelas historietas que se contam para enganar aqueles que trazem o desejo do engano no âmago do seu ser, um cântico de sereia para aqueles que o buscam ouvir.
O amor perfeito, esse então é a sublimação do amor, a utopia maior como se já não estivesse na sua semente a génese da ilusão.
Somos Homens. Possuímos corpos imperfeitos que vivem num mundo imperfeito. Como podemos porventura ambicionar vislumbres da perfeição ou mesmo de algo tão grandioso como o amor da forma que este é cantado pelos poetas?
Desiludam-se. Tivéssemos a sorte de porventura atingir momentaneamente esse deslumbramento e porventura viveríamos o resto das nossas simples vidas presos a esse passado, a essa suprema verdade, e porventura viveríamos tristes, melancólicos, nostálgicos da perfeição que outrora logramos, ainda que apenas fugazmente, alcançar.
Não se enganem. Vivemos paixão, volúpia e outros que tais. Entregamo-nos às preces de nosso corpo e nossa alma. Satisfazemos a nossa fome e a nossa sede. Encontramos abrigo e alento no regaço de alguém. Traímos desavergonhadamente a nossa perfeita -ou será imperfeita? - unidade e cobardemente procurámos a ajuda de alguém como se não fossemos suficientemente fortes para nos aguentarmos sozinhos.
Mas isso passa. Toda a gente sabe que passa. E se não passa é porque estás doente. Tira já isso da cabeça, nem que para tal seja necessário abrir-ta a meio e arrancar a ferros esse mal que te aflige.
Talvez sejas afinal um daqueles tristes tolos de que falei há pouco. Sabes, quando a luz é tanta os olhos cegam. É mesmo assim os olhos não foram feitos para contemplar tanta luz. E as tuas asas, as tuas asas, meu caro Ícaro tem cuidado, pois essas não foram feitas para alcançarem a abóbada celeste.
Senta-te. Sossega. És Homem e por Homens foste feito. Do barro, dizem que Ele nos criou e que ao pó havemos de voltar.
Querias pois então que essa vulgares carcaças atingissem os desígnios reservados aos desuses?
Repara como é o mundo. A beleza da borboleta desperta a cobiça de toda a restante Natureza, mas porém apenas subsiste um dia. Depois ela desaparece. A perfeição neste mundo imperfeito tem um preço. A questão é se afinal estás disposto a pagar o preço daquilo que tanto buscas ou dizes buscar?
Sabes que às vezes o verdadeiro saber está em desfrutar o caminho e não em chegar ao término da nossa jornada. Não há muita gente interessada em saber a verdade embora muitos o digam que a procurem."

na ilha de Circe

No dia seguinte acordamos com o barulho das aves.
A bruma tinha-se já dissipado e já era possível deslumbrar terra firme. Aquela imagem de um porto seguro era como que uma voz de sereia e eu era Odisseu com seus homens. Mas nem eu estava agarrado ao mastro, nem meus companheiros tinham os ouvidos tapados.
Acorremos o mais rápido que nos era permitido aos nossos humanos corpos e aos frágeis botes, ainda que o nosso espírito já lá estivesse chegado.
Mas se bem que chegado lá antes, de nada nos valera, porque não nos avisaram, a nós, sua parte física.
Uma vez aportados, comecei a entender a perdição de nossos espíritos.
Os homens estavam demasiado excitados para se aperceberem, mas algo naquela terra era indómita. As marcas estavam lá. Não era terra virgem. Pedaços de madeira, cinzas, destroços. Aquele seria uma ilha de Circe ou sua semelhante. Para nossa desgraça, parecera que a única terra que nos acolhia era terra de Demo. A ver vamos se não acabamos todos leitões.

orgulho


"o orgulho é desprovido de alma e, no entanto, em tudo a imita."

Agustina Bessa Luís

sábado, janeiro 27, 2007

terra à vista


Ao dia de São Tito do anno da Graça de dois mil e sete, os homens acordaram-me com boas novas. Existia sargaço nas águas que mareávamos.
O nevoeiro era no entanto ainda muito intenso e mantinha-se assim desde que cruzáramos o trópico. Assim sendo, o contacto visual não era possível, mas não devíamos estar longe de terra firme.
Os sinais repetiram-se ao longo do dia.
Por volta da hora primeiras, foi possível, por entre o cerrado nevoeiro, estabelecer contacto visual. Um breve vislumbre, mas efectivamente viu-se algo para além do grande mar aonde nos mantínhamos perdidos há meses.
Por volta da hora terceira, tornou-se a repetir essa imagem. Os homens estavam entusiasmados, mas os homens são homens, simples homens, há tempo a mais afastados de terra, sozinhos na vastidão solitária do negro mar.
Para o final da tarde, quando já mergulha o carro de Apolo no território de Hades, as silhuetas de pássaros irromperam ruidosamente sobre o céu que nos cobria as cabeças.
Efectivamente, já não podiam haver réstia de dúvidas. Para lá de toda aquela parede de nevoeiro, tinha que haver algo mais.
Certamente terra. Terra firme. Mas será terra do Senhor ou terra do Demo?

sexta-feira, janeiro 26, 2007

como é que se esquece alguém que se ama

“Quando tu sentires uma grande raiva de estar preso a alguém e desejares a toda a hora, ver-te livre da pessoa e quanto mais fazes por ver-te livre dela, mais a ela te chegas, então gostas. Mas quando só sentes uma grande paixão e não pensas noutra coisa, estás convencido que gostas, mas não gostas…”

Jorge de Sena, do livro “ Sinais de fogo “

"Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa – como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já não está lá? As pessoas têm que morrer os sítios têm de acabar, as pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como se esquece?

Devagar. É preciso esquecer devagar.
Se uma pessoa tenta esquecer de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixarias, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar.
A primeira parte da cura é aceitar que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos em tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor de cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na Alma.
A saudade é uma dor que só pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso primeiro aceitar, (…) esta mágoa, este moinho que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo.
É preciso aceitar o amor e a morte; a separação e a tristeza; a falta de lógica e a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados, se tivessem apenas o peso que têm em si, isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos aceitando que não têm solução.
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa, nem remédio, nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. Dizem-nos para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos, mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se tudo na Alma, fica tudo desarrumado.
O esquecimento não tem arte.
Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'



quinta-feira, janeiro 25, 2007

agora falando a sério...

agora falando a sério...




"A vida é uma coisa demasiado importante para falarmos sobre ela a sério.”
Oscar Wilde

domingo, janeiro 21, 2007

fumo

depois do comentário do dream brother no post anterior, não resisti a ir buscar mais esta antiguidade

Fumo, do meu cigarro
num cinzeiro
ali parado,
junto à garrafa
da cerveja morta
ali ao lado.
E uma borboleta azul
passeia no ar,
viciado,
pousando depois
num velho jornal
do mês passado.
E o fumo no ar
faz-me lembrar
um sonho cinzento,
com as janelas fechadas,
estações de comboios
e um trem barulhento,
que se mantêm parado,
prestes a partir
a qualquer momento,
sempre de fumo no ar
e vazio no olhar

demonstrando esquecimento
do passageiro na gare
virado para o mar
de fumo cinzento.


28091996

sábado, janeiro 20, 2007

doces murmúrios

revirando o baú de velharias, esta já tem mais de uma década.

A cidade não amanhece,
mantém-se e escura,
na tranquilidade matinal
da noite fria e pura.

O trânsito não começa,
a noite não termina,
os turnos não se rendem,
mantém-se a neblina.

As estrelas não se deitam,
o sol não desperta,
o povo não enfrenta
o ar da manhã aberta.

Os jornais não estão à venda,
a manhã não se levanta,
os barcos estão no cais,
o dia já não encanta.

Tudo se mantém escuro,
não tem sentido a hora,
e tu com doces murmúrios
pedes-me que não vá embor
a.

29091996

... e no entanto ela pula e gira.

ilusionista

Luz e sombras, fumo e espelhos.
Arte da ilusão.
O que se vê não é o que realmente parece.

É este o ofício de um ilusionista, simular ser o que parece. Criar magia, ilusão, fazer crer aos outros que realmente é possível, ainda que do lado de cá se saibam aonde estão os fios, os truques, as aldrabices, as mentiras…
É ser dissimulado, aldrabão, mentiroso e no entanto ser honesto, consigo próprio, com os seus propósitos, com os outros. Mentir, sabendo-se que se espera é uma mentira, mas aquela mentira em que queremos acreditar.
Vendedor de intrujices, sem no entanto ser intrujão. A única mentira de um ilusionista é não criar a ilusão. É falhar, mostrar as cartas, os espelhos, ser descuidado. É falhar perante os outros, mostrar que a ilusão é mentira, que não existe magia.

Mas afinal… será que o que parece, efectivamente o é? Ou será apenas uma ilusão, do maior dos ilusionistas?


Houdini ilusão ilusionismo

cassandra

Do alto do seu pódio de loucura, erguida pelo desdém dos homens, Cassandra deslumbra as tormentas que se aproximam, mas insistem teimosamente em não ouvirem as suas palavras.















Cassandra Guerra de Troia Troia Troianas

quarta-feira, janeiro 17, 2007

danos viscerais II

> taquicardia

Sou apenas um ser humano, igual a qualquer outro.
Com um simples coração igual a tantos outros, com dois ventrículos e duas aurículas.
Na realidade é um músculo, constituído por fibras musculares, que contraem e dilatam, que às vezes aumenta de tamanho e que noutras diminui, consoante a sua necessidade.
De vez em quando bate depressa.


Os médicos chamam-lhe taquicardia, os poetas chamam-lhe paixão.

danos viscerais I

> tripas & coração

Definitivamente estou apaixonado. Sinto-o no âmago do meu estômago. Sim, no meu estômago! Este estômago que tem um nó e sofre de amor.
E depois? Por acaso não pode o estômago sentir o que é o amor?
Não há quem ame com o coração? E não há quem faça das tripas coração? Então qual é a diferença se amo com o bucho, a figadeira ou os rins? Poderá ser assim tão diferente uma taquicardia de uma úlcera no estômago?
Eu sei o que sinto e sei o que é amor. É isto que sinto e me diz o meu estômago.

domingo, janeiro 14, 2007

mar de chamas

O jardim do paraíso está a arder, e do céu chove gasolina.

Uma mancha negra sobrevoa os céus.
Um pássaro. Um pássaro negro voa em círculos. Confuso. Aflito. Desnorteado.
Procura poiso. Terra firme.
No entanto, em seu redor é todo chamas… Até à linha do horizonte não vislumbra mais do que esse fogo que tudo consome e tudo destrói no seu caminho.
Cada aproximação, cada tentativa de porto seguro, mais não vale que umas penas chamuscadas e um pouco de fuligem.
Resta o céu… somente esse enorme e solitário céu… ou a imolação no fogo.