sábado, dezembro 30, 2006

um conto de natal...

Um conto de Natal no dia 30. Está bem. Eu sei que está um pouco atrasado, mas os reis magos ainda estão mais e esses eram suposto serem homens sábios, logo sem desculpa para se perderem nem atrasarem. Mas na realidade o Natal é quando um homem quiser. E eu quero que seja hoje, como o podia ser há vinte e sete anos atrás.
O Natal é quando um Homem quiser, principalmente aquela parte de menino que temos dentro de nós. Sim porque ainda tenho uma parte de menino, que gosto de a ter bem presente, principalmente nestes dias.

Este, aliás, é um conto de Natal que fala de uma menina. Uma menina que cresceu, ou quis crescer depressa demais.
Estranhamente os miúdos, nunca dizem que são miúdos. Dizem sempre que já são crescidos. É uma pressa tão grande de crescer, que às vezes até parecem irromperem pelas suas roupas. Querem sempre ser crescidos, e só assim o deixa de ser quando efectivamente são crescidos. Mas aí é já mais difícil voltar para trás.

Mas esta menina, quis crescer como todas as outras e quis crescer depressa. Não só, já há muito que sabia que não havia Pai Natal, como este ano não queria que lhe deixassem a tradicional prenda no sapatinho: uma boneca.
Os pais rapidamente lhe acederam ao pedido, já que o dinheiro nunca era muito e assim, podiam utilizar o que estava guardado para a boneca em roupas e material escolar.
A nossa menina estava assim decidida a passar o primeiro Natal à adulta, e lá foi alegremente com os seus pais, às lojinhas da sua cidade, comprar as suas roupas e os livros para a escola.
Já no regresso a casa, passaram pela loja dos brinquedos. A nossa menina, que naturalmente ainda era uma menina, não resistiu a olhar para a montra, ainda que disfarçadamente se tenha deixado ficar para trás para os seu pais não se aperceberem. Mas assim que pousou os olhos na montra todas as suas atenções foram para uma boneca por qual imediatamente se apaixonou. E de tal forma ficou encantada por ela, que só se apercebeu que os seus pais chamavam por ela, quando lhe tocaram no ombro. Ainda lhe perguntaram se queria a boneca, mas ela, sabendo que o dinheiro que era suposto ser para a boneca já fora gasto, prontamente recusou, querendo manter a postura de menina crescida.
Nessa noite, ao deitar, a nossa menina não conseguia tirar a boneca da sua cabeça. Ainda lhe ocorreu pedir, baixinho, a boneca ao Pai Natal, mas entre umas pequenas lágrimas que continha, remoía e afirmava para si mesmo que aquela personagem roliça, de barbas brancas e roupa vermelha, só existia mesmo nas camionetas dos refrigerantes e nas cabecinhas tontas das crianças. E ela, naturalmente, já era crescida.
E lá se foram passando os dias até à véspera de Natal, se bem que as noites fossem mais difíceis para a nossa menina, que se esforçava por não se lembrar da boneca. Tolices de menina crescida.
Lá chegou a noite de consoada, e como a menina já era crescida, lá ficou acordada até à meia-noite, como o resto dos adultos, para a troca de presentes, ao invés de ir para a cama e ir buscar a sua prenda ao sapatinho no dia seguinte.
Ela até achou uma seca a troca de presentes. Faltava-lhe a magia a que estava habituada, aquele encantamento. Lá recebeu uma camisola e umas calças e ainda um bonito livro de capa colorida com contos lá dentro.
Mas eis que para o final, lá ficou um singelo embrulho, em papel simples e baço, apenas com o nome da nossa menina, sem dizer de quem era. Os pais mostravam-se também surpreendidos. A menina correu para o embrulho e de uma avidez só, desfez o embrulho e eis que lá estava o que a sua cabecinha desconfiava e o coração ansiava: a boneca de sua afeição, a boneca da loja.
A menina não ficou muito convencida da inocência dos pais nesta surpresa, mas por outro lado também ficou na dúvida: será que o Pai Natal existiria mesmo?
De que qualquer forma, naquele dia estabeleceu consigo mesmo que seria crescida trezentos e sessenta e quatro dias por ano e mais um nos anos bissextos, mas naquele dia seria sempre criança, e lá no fundo do seu coração o Pai Natal existiria sempre.

sexta-feira, dezembro 29, 2006

encantamento

Ele:

9 Arrebataste-me o coração, minha irmã e minha noiva,
arrebataste-me o coração com um só de teus olhares,
com uma só jóia de teu colar.

10 Como são ternos teus carinhos,
minha irmã e minha noiva!
Tuas carícias são mais deliciosas que o vinho;
teus perfumes, mais aromáticos
que todos os bálsamos.

11 Teus lábios, minha noiva, destilam néctar;
em tua língua há mel e leite.
Tuas vestes têm a fragrância do Líbano.

Cant. 4, 9-11

quarta-feira, dezembro 27, 2006

espelho


Cá em casa há um espelho. Nem sempre gosto de ver o seu relexo. Há dias em que a reprodução devia ser interdita.


La Reproduction interdite, A Reprodução Interdita (Retrato de Edward James, 1937, Rene Magritte
Óleo sobre tela, 79x65,5 cm
Roterdão, Museum Boymans-van Beuningen

terça-feira, dezembro 26, 2006

boxe


























Há algo de metálico no sabor do sangue na boca. Há algo de sangue no sabor metálico na boca. Há algo como um "uppercut" mental, que nos deixa desorientados... que nos deixa de sabor metálico na boca. Há algo de sangue nestas pancadas. Há algo de boxe...

segunda-feira, dezembro 25, 2006

poema de natal


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

texto de Vinicius de Moraes - edição de autor, RJ, 1960
imagem (A Natividade 1501/6,
Museu Grão Vasco, Viseu) de Vasco Fernandes (Grão Vasco)

sábado, dezembro 23, 2006

roque


O roque é um movimento especial concedido ao rei. Essa jogada é um movimento combinado entre o rei e a torre. Para efetua-lo, devem estar o rei a e torre na primeira fila, em suas casas iniciais, e não devem haver peças entre elas. Também é necessário que não se tenha movido o rei e a torre anteriormente. O movimento consiste em avançar o rei duas casas em direção a torre que se vai rocar e colocar a torre ao lado do rei, saltando sobre ele.Todos os movimentos se fazem em uma única jogada.

sábado, dezembro 09, 2006

voador

voador s. m.,
acrobata que salta de um trapézio para outro, mais ou menos distante



Já não faço o número do trapézio voador…

Quando estamos no trapézio voador, ganhamos asas. Perdemos o peso, as amarras à terra. Lá em baixo, distante, fica o mundo, cá em cima voamos… baixinho, e por breves momentos, mas voamos. Todo o voo é curto, mas quando suspensos no ar, o tempo parece suspender-se também, e lá em baixo, e cá em cima, e em todo o redor, tudo fica imóvel.
Quando nos atiramos no vazio do espaço, a confiança que depositamos no outro é cega. Acreditamos sempre. Só podemos acreditar, senão não nos atirámos, senão não voamos, senão… não há número do trapézio voador.
Quando agarramos as mãos do outro, somos os donos do mundo, somos senhores daquela alma que se nos entrega, que nos estende a mão, de quem sentimos a pele, o suor, a palpitação.
Quando pelo contrário, é a mão do outro que nos agarra, sentimos medo mas também confiança. Sentimos que todo o mundo se condensa ali, naquele contacto, ténue e firme, breve e eterno. Sabemos que aquela mão que nos agarra é tudo para nós, como no início, e como no fim.
Quando sentimos a as mãos a escorregar…

Passei três meses no hospital dos ossos quebrados. O chão realmente é duro, ainda que não o pareça lá de cima. E o corpo estilhaça quando em contacto com a terra.
A minha família, os meus amigos preocuparam-se imenso comigo, não sabiam se eu recuperava, ainda que os médicos os assegurassem do contrário, temiam sempre pela minha saúde, física e mental.
Agora já saí, já curei as feridas do corpo, mas não as da alma. Por agora apenas vejo os outros a voar baixinho. Tenho medo.
Agora já não faço o número do trapézio voador… por enquanto.

talvez

Talvez, Adverbio, com origem no latino "talivice", exprime possibilidade de dúvida, quiçá porventura mesmo.


Talvez, não é carne, não é peixe, não é terra, não é mar, não é bicho, não é gente, não é sim, não é não.

Talvez, é um pouco de tudo e não chega a ser nada.

Talvez, eu um dia descubra o que é talvez, ou talvez mesmo até vos diga.

Talvez, é um pouco de mim… ou talvez, seja eu mesmo um pouco talvez.

floricultura


Deixem ver se percebi…

Pode uma flor sobreviver depois de ter sido colhida?

Claro que não! Por isso mesmo, a partir desse exacto momento em que a colhemos, devemos, temos a obrigação para expiar tal acto, de desfrutar totalmente de todo o prazer que ela nos dá.


E manter-se-á a flor se não a colhermos?

Por ventura talvez. Não sabemos. Sabemos que tudo que é vivo perece, tudo o que é natural um dia fina. Assim o será com a flor, já que a vida de uma flor é naturalmente curta.
Não saberemos se cumprirá o seu desígnio, mas sabemos que aquela flor que não colhemos, ficará ali sempre no mesmo sítio, imóvel, sempre perto, mas sempre longe.

Deixem ver se percebi isto… Se calhar ainda não. Se calhar ainda não faz muito sentido.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

história antiga


Era uma vez, lá na Judeia, um rei. Feio bicho, de resto: Uma cara de burro sem cabresto E duas grandes tranças. A gente olhava, reparava, e via Que naquela figura não havia Olhos de quem gosta de crianças. E, na verdade, assim acontecia. Porque um dia, O malvado, Só por ter o poder de quem é rei Por não ter coração, Sem mais nem menos, Mandou matar quantos eram pequenos Nas cidades e aldeias da Nação. Mas,Por acaso ou milagre, aconteceu Que, num burrinho pela areia fora, Fugiu Daquelas mãos de sangue um pequenito Que o vivo sol da vida acarinhou; E bastou Esse palmo de sonho Para encher este mundo de alegria; Para crescer, ser Deus; E meter no inferno o tal das tranças, Só porque ele não gostava de crianças.

Coimbra, 12 de Outubro de 1937

Miguel Torga Diário I (1941)